Dados da última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada no Brasil em 2019, revelam que 52% das pessoas com 18 anos ou mais receberam diagnóstico de pelo menos uma doença crônica. O levantamento, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde, alcançou 108 mil domicílios. Ainda segundo o IBGE, as doenças crônicas são um dos maiores problemas de saúde pública do País e do mundo, com impactos que permeiam a ocorrência de mortes prematuras, a perda de qualidade de vida, o aparecimento de incapacidades e elevados custos econômicos para a sociedade e para os sistemas de saúde.
“Reconhecemos que a doença de um dos membros influencia o bem-estar de toda a família, impactando sua interação, modificando padrões organizacionais e de funcionamento, e a sobrecarregando com demandas emocionais, físicas e financeiras. Na prática de cuidado com família é importante que haja uma sistematização da assistência direcionada às suas demandas e desafios. A escassez de modelos que sistematizassem a assistência à família motivou a organização de um modelo teórico para o atendimento e acompanhamento de famílias vivendo a experiência do adoecimento de um de seus membros”, explica a professora e pesquisadora do Instituto Integrado de Saúde Maria Angélica Marcheti.
Segundo a professora, os enfermeiros e os demais profissionais de saúde precisam de fundamentação teórico-prática para realizar intervenções efetivas com famílias, em especial aquelas vivenciando a experiência da condição crônica de saúde e ou do adoecimento de crianças e adolescentes, para fortalecê-las no enfrentamento das adversidades provocadas pela situação, e para ajudá-las a manejar o cuidado no domicílio. “A construção de um modelo teórico que fundamentasse o trabalho do enfermeiro nessa circunstância tornou-se essencial. Desse modo, a construção do modelo iniciou-se no meu processo de meu doutoramento na Universidade Federal de São Paulo, desenvolvido sob orientação da professora Myriam Mandetta”, lembra.
“O modelo destaca a relação colaborativa entre enfermeiro e família, visando o processo de avaliação, e proposição de intervenções ajustadas às circunstâncias de cada família. Contém importantes elementos que possibilitam a sua utilização na prática: uma linguagem clara e teoricamente sustentada, uma rica descrição do processo de avaliação e intervenção com famílias e a aplicação prática”, explica a pesquisadora. “O foco é a família como sistema de cuidado, considerando a vulnerabilidade, a resiliência e as interações e significados que atribui a experiência de doença. O Modelo Interacional de Cuidado à Família, de minha autoria em conjunto com a professora Myriam Mandetta, oferece fundamentação para a prática do enfermeiro com a família neste contexto, promovendo seu empoderamento para lidar com as adversidades surgidas ao longo da trajetória da condição crônica de saúde da criança”, conta.
Ela detalha que o objetivo do Modelo Interacional de Cuidado à Família é incluir a família da criança com condição crônica em seus cuidados, ouvindo suas vozes e fortalecendo a sua capacidade para enfrentar as situações atendendo às suas necessidades e demandas. “No Modelo, o enfermeiro acolhe a família, reconhecendo suas forças e vulnerabilidade e, por meio do processo de cuidado interacional, respeitando as crenças e os padrões organizacionais, auxilia esta família a resistir às crises e reorganizar-se para o enfrentamento da situação de condição de saúde da criança com melhores condições para o manejo do cuidado”, fala Maria Angélica.
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“Um grupo de enfermeiras, membros da Sociedade Brasileira de Enfermeiros Pediatras (Sobep), recebeu um convite da enfermeira norte-americana Cecily Betz para contribuir com o livro Worldwide successful pediatric nurse-led models of care. O objetivo era publicar um modelo de cuidado já implementado no Brasil que tivesse apresentado resultados exitosos. Em resposta ao convite, formou-se um grupo de enfermeiras pediátricas brasileiras, vinculadas à Sobep, para discutir qual modelo seria apresentado no livro”, relembra a pesquisadora do Inisa.
O grupo, então, começou a discutir qual modelo responderia às exigências da editora, sendo unânime a escolha do IFCM, já que tinha uma robustez e uma experiência clínica que pudesse ser divulgado no livro em âmbito internacional. A partir do momento que se decidiu que esse modelo seria documentado neste livro, todas as enfermeiras que trabalham com a temática participaram da elaboração do capítulo. O capítulo foi publicado em 2023, com o título: Interactional Model of Caring for Families of Children with Chronic Conditions (veja ).
Laboratório de Estudos e Pesquisas em Intervenção Familiar
A professora Maria Angélica é líder do Grupo de Pesquisa Laboratório de Estudos e Pesquisas em Intervenção Familiar (Lepif) da UFMS, o qual possui professores do Inisa e de outras instituições. “A professora Myriam Mandetta é membro pesquisador e consultor externo, tendo contribuído com os estudos e produção do grupo”, ressalta Maria Angélica.
O Lepif tem como objetivo proporcionar integração entre o ensino, a pesquisa e a extensão; promover o desenvolvimento de estratégias de intervenções e de cuidado ao ser humano em todas as fases de vida e a família, no contexto da condição de saúde; e incentivar estudos avançados em enfermagem da família e transferência de conhecimento, ensino para avaliação e comunicação com família, implicando em importantes contribuições para a comunidade acadêmica científica em âmbito nacional e internacional.
Clínica Ampliada de Pesquisa e Intervenção Familiar
De acordo com a pesquisadora, o Modelo está implementado e sendo aplicado na Clínica Escola Integrada da UFMS, onde funciona a Clínica Ampliada de Pesquisa e Intervenção Familiar, vinculada ao grupo de pesquisa Lepif; e, em São Paulo, está vinculado ao Núcleo de Estudos da Criança e do Adolescente (Necad), mas ainda não está implementado em unidades de saúde.
“Atendemos famílias que vivenciam a experiência do adoecimento e da condição crônica de saúde da criança, e famílias cujos bebês de risco receberam alta das unidades neonatais do Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian (Humap-UFMS/Ebserh). O Modelo guia o atendimento dessas famílias e a proposição de intervenções, de modo a promover o seu fortalecimento e resiliência para o melhor manejo dos cuidados da criança no domicílio e nos demais cenários de cuidado”, acrescenta.
Ela explica que as famílias dos recém-nascidos de risco são encaminhadas pela equipe de saúde da Unidade de Cuidados Intermediários Neonatais do Humap-UFMS/Ebserh. “Elas são acompanhadas mensalmente até que o bebê tenha 2 anos de idade, por professoras enfermeira, fisioterapeuta, psicólogas e nutricionista, e estudantes de graduação e pós-graduação. Após esse período, o atendimento é agendado a cada seis meses. As famílias de crianças com condições raras e crônicas de saúde, e dependentes de tecnologias, são encaminhadas por profissionais da equipe de saúde da rede de atenção básica e demais serviços públicos vinculados à rede como o Centro de Atenção Psicossocial, que tem encaminhado as famílias de crianças com Transtorno do Espectro Autista. Também recebemos famílias por livre demanda que procuram o atendimento, por terem conhecimento dele por meio das redes sociais. Famílias de crianças com câncer são atendidas também na Associação dos Amigos das Crianças com Câncer de Campo Grande (AACC), pois algumas delas residem fora da cidade”, detalha Maria Angélica.
“Até a presenta data, estamos acompanhando cerca de 90 famílias de recém-nascidos de risco que receberam alta da Unidade de Cuidados Intermediários Neonatais do Humap-UFMS/Ebserh e 25 famílias de crianças com condições raras e crônicas de saúde, sendo algumas delas dependentes de tecnologias. Entre as principais condições de saúde temos as sequelas da prematuridade e de anoxia no nascimento, as síndromes congênitas, o câncer infanto-juvenil, as doenças hematológicas, as doenças renais e os transtornos mentais”, diz a pesquisadora. “O Modelo favorece e promove as forças da família, ajudando-a a manejar o cuidado à criança e sua condição clínica, bem como organizar a rotina familiar modificada pelo impacto das demandas desencadeadas pela condição da criança e seu tratamento. A abordagem às famílias com base no Modelo, promove o empoderamento e a resiliência familiar para que ela possa sentir-se segura e confiante em sua capacidade para o cuidado, para o manejo de equipamentos de saúde, e para tomar decisões relativas aos cuidados e tratamento do filho”, continua a professora.
Ela lembra que a aplicação do Modelo na Clínica Escola Integrada da UFMS tem ocorrido desde o término do doutorado em 2012, com a participação de estudantes da graduação, pós-graduação e profissionais de saúde do serviço. “Inicialmente, o Modelo foi desenvolvido para famílias de crianças com deficiência intelectual em forma de Programa de Intervenção com Famílias. Com novos estudos em que o modelo foi utilizado, ele foi ampliado para famílias vivendo outros tipos de condição de saúde, como câncer, anemia falciforme, doença renal crônica, crianças com transtornos do espectro autista, e crianças com outros tipos de condições de saúde, deficiência e síndromes. Esses estudos já estão publicados”, fala a pesquisadora.
Segundo ela, além da aplicação na Clínica, uma disciplina que aborda o Modelo Interacional de Cuidado à Família tem sido ofertada aos estudantes de pós-graduação com vaga para os da graduação, sob o tema: Fundamentos metodológicos e teóricos filosóficos para intervenção e cuidado às famílias. “Essa disciplina recebe alunos especiais de outras instituições de ensino”, reforça.
Resultados
“Os primeiros estudos realizados enfocam a experiência das famílias na clínica em que foi aplicado o Modelo. São estudos de abordagem qualitativa em que as famílias participam de entrevistas e grupos focais, e trazem o significado vivido nesse processo de enfrentamento de cuidado da criança. Como resultado ainda, as famílias modificam o modo como manejam a situação e apresentam importantes interações com profissionais na área da saúde, empoderando-se para as tomadas de decisão frente ao tratamento da criança”, conta Maria Angélica.
Para a pesquisadora, a participação das famílias oferece um momento para refletir e buscar novas formas de lidar com as situações vivenciadas. Os familiares destacam que as intervenções mais importantes durante os atendimentos são: serem ouvidos, criando um ambiente onde podem conversar e compartilhar momentos em família; serem encorajados pela equipe profissional a aprimorar os pontos fortes e habilidades da família; e receberem aconselhamento da equipe, que fornece orientações específicas para suas vivências, auxiliando no manejo de situações conflitantes e dolorosas.
“O acesso da família a informações baseadas no contexto situacional e nas necessidades de orientações percebidas é extremamente útil. O Modelo permite que o enfermeiro ofereça à família a oportunidade de ampliar sua compreensão sobre a questão que a aflige, abrindo perspectivas para novos entendimentos. Um Modelo estruturado de atenção à família possibilita um melhor relacionamento entre o enfermeiro e a família, favorecendo sua interação com o serviço de saúde, com outros profissionais da equipe, com a comunidade e com os estudantes. Além disso, cria e potencializa recursos na família para que ela possa lidar mais eficazmente com a condição da criança. Estimula a capacidade da família de enfrentar situações de crise imediata, aumentando sua competência para lidar com desafios futuros e fortalecendo processos interacionais essenciais para enfrentar, recuperar-se e fortalecer a resiliência,” explica a professora.
Jeferson dos Santos Cabral foi diagnosticado com osteossarcoma e passou por uma cirurgia para a remoção do tumor. Ele é um dos adolescentes atendidos pela AACC. Sua mãe participou das atividades e do grupo de intervenções com as famílias, o que lhe proporcionou mais segurança e alívio, pois conseguiu entender melhor o tratamento do filho em relação à doença. “É bom ter o apoio de todos – da família, enfermeiras, psicólogas. Podemos desabafar e expressar o que estamos sentindo”, revelou Jeferson.
Sandra Santos é mãe de Vinícius, que foi encaminhado para atendimento pelo serviço de nefrologia do Humap-UFMS/Ebserh. Vinícius havia desistido da escola devido à baixa estatura e ao baixo peso provocados por uma doença renal. Contudo, após iniciar o atendimento na Clínica Escola Integrada da UFMS, ele decidiu retornar à escola, onde ganhou dois concursos de redação e, posteriormente, foi aprovado no Curso de Ciências Biológicas no âܲ do Pantanal. “O que um trabalho sistematizado com uma família não proporciona? Fico muito satisfeita com todos os resultados que alcançamos. É gratificante observar como as famílias se reorganizam para darem conta de seus desafios, a partir de intervenções que promovem suas forças e habilidades”, destaca a professora Maria Angélica.
Ela também destaca que os resultados da aplicação do Modelo e da abordagem familiar têm sido amplamente divulgados na literatura científica, incluindo teses, dissertações, artigos, capítulos de livros e outros materiais, alguns deles disponíveis em formato on-line.
Entre eles está o capítulo intitulado , publicado no livro . Escrito pelo grupo de pesquisadoras: Maria Angélica Marcheti (UFMS), Myriam Aparecida Mandetta (Unifesp), Beatriz Rosana Gonçalves de Oliveira Toso (Unioeste), Eliane Tatsch Neves (UFSM), Fernanda Ribeiro Baptista Marques (UFMS), Neusa Collet (UFPB), Patrícia Kuerten Rocha (UFSC), Lucila Castanheira Nascimento (EEUSP-RP), o trabalho descreve o Modelo Interacional de Cuidado à Família, sua base teórica e conceitual e sua aplicação na Clínica Ampliada em Pesquisa e Intervenção Familiar do Instituto Integrado de Saúde; as lições aprendidas, os principais resultados obtidos, e as potencialidades e os desafios para sua implementação na prática clínica.
Novas perspectivas
A pesquisadora ressalta que os planos futuros incluem desenvolver novos estudos para avaliar a aplicação do Modelo em outras populações. “Estamos implementando o Modelo com adultos, idosos e suas famílias, e utilizando aplicativos como o WhatsApp para atendimento on-line de famílias que residem em outras cidades e enfrentam dificuldades de transporte. Além disso, o preparo da família por meio de simulação clínica tem sido estudado e implementado, proporcionando um ambiente controlado onde podem praticar e aprimorar suas habilidades de cuidado. Essa abordagem não apenas melhora a confiança e a competência dos familiares, mas também permite que eles se sintam mais preparados para lidar com situações reais. Estamos expandindo essas iniciativas para incluir treinamentos regulares e sessões de feedback, garantindo um suporte contínuo e eficaz para as famílias.”
Ela também menciona que cursos estão sendo preparados para profissionais de saúde e estudantes de graduação e pós-graduação. “Temos oferecido minicursos em eventos nacionais e internacionais para divulgar o Modelo. Estamos utilizando a Simulação Clínica na capacitação de profissionais e estudantes para a abordagem à família e aplicação do Modelo. Pesquisas futuras são necessárias para avaliar as intervenções familiares no contexto da implementação do Modelo Interacional de Cuidado à Família. Será importante também avaliar as competências essenciais dos estudantes de graduação e pós-graduação para a implementação do Modelo na prática clínica. Além disso, uma proposta está sendo encaminhada ao Ministério da Saúde para sua aplicação no âmbito da Rede de Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde”, explica.
Para a pesquisadora, entre os desafios futuros da pesquisa, o principal é a capacitação de outros enfermeiros e profissionais de saúde para a aplicação do Modelo Interacional de Cuidado à Família e sua inclusão nas políticas públicas voltadas ao atendimento de famílias que vivenciam a condição rara e crônica de saúde de um de seus membros. “Outro desafio é a formulação de instrumentos que possam mensurar o impacto do Modelo sobre as interações familiares e identificar as principais intervenções que fortalecem a resiliência na família”, conclui a Maria Angélica.
Texto: Vanessa Amin
Fotografias: Acervo do projeto